sexta-feira, 20 de setembro de 2013

dia 0: antes de começar






Em 17 de setembro de 2013 19:09, anderson do carmo<ander_lc5@hotmail.com> escreveu:
 
esse é um convite para uma escrita-labirinto: não se pretende apresentar certezas, mas deparar-se com dúvidas,
escrevo esse texto-pergunta e aguardo seu texto-resposta-pergunta. lhe enviarei um texto resposta e depois teremos cada um feito uma pergunta e respondido a algo.
faremos então uma síntese.
beijos.
and.
a dança é uma operação simbólica necessariamente melancólica.
tenho pensado muito nesses termos ultimamente e parto dele pra começarmos a escrever.
essa afirmação é também em função das origens dos entendimentos de coreografia e orchésographieem thoinotarbeau - onde a pedido de seu aluno o mestre escreve sua dança para que ela possa ser feita mesmo depois de sua morte - e da permanente performance frontal para o olhar do rei no balé classico codificada; mas para além disso penso que os processos de investigação, articulação e partilha em dança operam como intermediários simbólicos em uma aproximação do Real. a priori uma ação impossivel de concretizar-se fatualmente: tocar o Real seria despojar-se de elementos simbólicos e despojar-se de elementos simbólicos seria deixar de ser humano.
assim, dançar é criar artifícios simbólicos que permitam de algum modo tocar a aridez do Real. nunca nela mergulhar,mas tocá-la.
nessa medida parece travar-se com o tempo uma relação muito específica. quase um carregar de tempo as imagens que o corpo produz.
agambem fala no texto 2 de ninfas em como no século XV o mestre de dança domenico de piacenza enumera algo chamado de "fantasmata" como elemento fundamental a sua arte; ela seria "uma parada repentina entre dois movimentos, capaz de concentrar virtualmente na própria tensão interna a medida e a memória de toda a série coreográfica" (p. 24.)
inevitavelmente uma relação de transformar carne em tempo: memória. agambem escreve que para domenico - e concordo totalmente - é uma composição de fantasmas.
ele completa escrevendo que " o verdadeiro lugar do dançarino não está no corpo e em seu movimento , mas na imagem como 'cabeça de medusa', como pausa não imóvel mas carregada, ao mesmo tempo, de memmória e de energia dinâmica. porém isso significa que a essencia da dança não é mais o movimento - é o tempo".


Date: Tue, 17 Sep 2013 20:29:12 -0300
Subject: Re: sobre a formação compartilhada em artes presencias do solo expectativas e promessas de alejandroahmed
From:
sandrameyer@globo.com
To:
ander_lc5@hotmail.com


Anderson aceito sim o convite para uma possível escrita em labirinto, sem saber para aonde vamos. Mas a boa companhia compensa as incertezas. Parto então da deixa do tempo...do que agorinha a pouco lia sobre os estados da dança que Degas quis pintar, descritos por Paul Valéry em Degas Dança Desenho: “Dissemos que neste gênero de movimento {dança}, o Espaço era apenas o lugar dos atos: ele não contém seu objeto. É o Tempo, agora, que desempenha o papel mais importante...” - é que no universo da dança o repouso não tem lugar.
Cem anos após a Orchésographie(1588) de ThoinotArbeau, o mestre de ballet e padre jesuíta Claude-François Ménestrier escreveu em Des ballets anciens et modernesselonlesreglesdutheatre (1682) sobre a vantagem mimética do ballet sobre a pintura. Os personagens da pintura seriam de fato imóveis, cujo prazer estético viria da captura do corpo no cerne do seu movimento, ao passo que a dança é toda uma sequência de movimentos que se sucedem uns aos outros, sem descanso. Rompe-se com a representação do corpo imóvel, com a associação da beleza ao repouso. A dança seria para Ménestrier e seus pares algo entre um poema mudo e uma pintura movente, revelando seu entre lugar - do movimento e da pausa. Ou de uma paragem, como diria André Lepecki. A imobilidade pode se constituir como um ato de resistência que liberta a dança da “fatalidade do movimento” (Goumarre, 2004).



Sigo ainda em associações ligadas ao tempo, à imobilidade e ao movimento que me fizeste pensar. Poses sequenciadas em staccato, formas angulares, pés e joelhos flexionadas. Debussy tinha ressalvas quanto a concepção de Nijisnky para a coreografia Jeux: “Nijinsky criava triplos colchetes com seus pés, com seus braços, então, quase que paralisado, permanecia enfurecido deixando o som escapar”. “Isto é terrível”, bravejava o compositor.


Jaques Ruviére, ao escrever uma crítica após a estreia de Sagração da Primavera, obra de Nijisnky composta em 1912, questiona - “Quem é o coreografo?”, estabelecendo uma relação com o tempo: “o autor de um balé não é nem o poeta, nem o decorador, nem mesmo o compositor. No mesmo momento em que ganha consciência dos movimentos do bailarino, entende que a beleza não se mede através da perfeição da pose onde começa e acaba um enchainement, mas no percurso do bailarino no tempo. Isto é, nessa trajetória pulsante que a mão do pintor não poderá fixar. A dança não é um perfil: é um caminho à nossa frente”.Inúmeras 'cabeças de medusa' ? Somos tecidos do tempo, dizia Bérgson.


From: ander_lc5@hotmail.com
To: sandrameyer@globo.com
Subject: RE: sobre a formação compartilhada em artes presencias do solo expectativas e promessas de alejandroahmed
Date: Wed, 18 Sep 2013 04:39:13 +0000

 
espaço como lugar onde se dão os atos de um objeto-dança que não pode repousar/descansar.
ação do tempo sobre os corpos como rompimento de representação deste corpo e como fundador de um poética da presença.
fazer uma dança que não se coloque no lugar da coisa, que não re-apresente a coisa, que não represente coisa, mas - isso sim - que seja coisa. a paragem, o não-movimento na arte que fatalmente é feita de movimento certamente sempre esteve lá, vide o corpo de baile que suspende e sustenta sua imobilidade para que o solista dance.
a escolha por operar uma ação necessariamente subversiva - ao inverter sentido que se está dado onde a se faz dança de movimento - e sublinhar a inviabilidade de não mover-se é um posicionamento ético que dá a ver a dança quando lhe tira o que é essencial.
uma poda na ostentação, uma vírgula na fatalidade do movimento que soterraria o próprio porque da dança ser.
quando ruviére fala que a beleza da dança está na trajetória e que essa dança é um caminho à frente parece falar do que hoje chamamos e tentamos dar conta de entender nomeando como engajamento. não importa o que, importa como.
um dos enunciados do grupo cena 11 imediatamente me vem a mente: disponibilidade como poder.
essa disponibilidade precisa ser sempre tão transitória quanto possível, caso contrário vira certeza e não tem lugar.
a relaçao ontológica entre movimento e dança e a relação melancólica entre dança e sujeito parece sempre tentar fazer com que nossos fantasmas não se cristalizem, mas possam gerar imagens prenhes de tensão poítica. portanto prenhes de relação com a pólis, como o mundo.
uma vez que mudamos relação com o mundo, mudamos entendimento do corpo que temos e somos. e minimamente se pode tornar o Real menos árido.
utopia inevitável a lahildahilst: a vida é crua.
adendo dançante: mas que ao menos venha com elegância.
lembrete crítico: a dita elegância é sempre movente. tão movente quanto necessário para não fazer da dança uma certeza, mas um labirinto que se constrói na medida em que se trilha.



Date: Tue, 17 Sep 2013 22:40:56 -0300
Subject: Re: sobre a formação compartilhada em artes presencias do solo expectativas e promessas de alejandroahmed
From: sandrameyer@globo.com
To: ander_lc5@hotmail.com

Outros anotários para nosso percurso-escrita num Moleskine compartilhado. Vamos recolhendo lampejos de pensamentos, constituindo um imaginário que se produz admitindo a indeterminação e o não-saber. C0-autores de uma com+posição em aberto.
Dança em temporalidades e espacialidades diversas, até mesmo numa quase imobilidade, insistem as fantasmatas?
Olho para aquele que dança. Movo-me pela sua intensidade, e menos pelo seu deslocamento. Seria inevitável não resvalar algum nível representacional? Romperíamos com a re-apresentação? Valeria a ação do sentido mais do que o sentido da ação...talvez o sentido como direção, como vetor>>>>>>>>>>>>>>>>>>
Lembra que o Francis Bacon fazia trípticos para romper com a compulsão do espectador em construir significados? Antídoto contra a clausura da percepção.

Presença e(em) relação. Sujeitos menos ensimesmados interessados naquilo que pode(rá) emergir e imergir no acontecimento. Assim talvez chegaríamos na tal coisa, no seja coisa.
Mover implica fatalmente em uma ética e uma política. A dança é um caminho à nossa frente...devir futuro que recolhe traços do passado possíveis de serem atualizados -
Nietzsche afirmavaquenãopoderiahaverpresentssem o esquecimento.
Disponibilidade requer generosidade e escuta. Estas sim não podem ser tão transitórias. Construir um campo existencial comum na trilha.
Em 17 de setembro de 2013 21:20, anderson do carmo<ander_lc5@hotmail.com> escreveu:
 
um fantasma é o cumprir de uma promessa jamais feita, a materialidade de algo que foi permanentemente perdido, é posse sobre algo que jamais foi seu.

um fantasma é espécie de intensidade que enche uma parada de movimento e a todo momento de um deslocamento anuncia a possibilidade de seu frear.

a representação se apresenta como fantasma não apenas da dança, mas fantasma da arte.

em última instância a representação, em vez de uma presentação (presentificação?), seria modo de operar sobre o mundo que atormentaria para além do exercício da arte: em que medida as (auto)imagens, (auto)narrativas, (auto)discursos cristalizados fincam nossos pés em uma permanente manutenção do que já foi e estancam a emergência do que ainda pode ser?

representar sendo entendido como fazer novamente presente o que já é se faz nocivo na medida em que impede o que ainda pode ser e se quer foi imaginado. representação como estanque do devir.

uma oposição entre a ação do sentido e o sentido da ação: no lugar de descobrir e grudar e definir os sentidos, significados, imagens, narrativas e discursos cristalizados das ações, perceber em tais ações um sentido-direção, um vetor que dê vazão a percepção de sentidos, significados, imagens, narrativas e discursos ainda por vir.

a (re[a])presentação como manuseio do tempo, como fazer-se presente funcionaria como um pharmakós: veneno ou antídoto para a doença de tomar o presente como uma sucessão do passado e uma precedência de futuro. ser/estar presente é gerir uma coexistência de tempos: carregar a virtualidade do passado e a imprevisibilidade do futuro.

dançar conjugando o tempo presente é transformar uma cicatriz de tempo - um dejeto que resta - em um adorno.












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